quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

"Rabecas: Luteria e Performance"


O corpo é áspero, com formato semelhante ao de um violino, a rabeca é um instrumento que reverbera sonoridades agudas. Poesia viva e rústica. Dela parece entoar uma espécie de choro, ao deslizar das mãos daqueles que a tocam cheios de paixão. Preenchendo com seu pranto arranhado corações, saudades e lugares a ermo.



Segundo alguns estudos, o instrumento teria existido em todas as grandes civilizações da Ásia e da África. Chegando a Europa, durante a dominação dos mouros, onde se tornaria bastante apreciada nas mãos dos menestréis medievais. No Brasil, o interior cearense é rico nessa tradição. Fato devidamente comprovado pelo professor e pesquisador Gilmar de Carvalho, e o fotógrafo Francisco Sousa.

"Encontrei em meus estudos referências a um instrumento persa, chamado kamantchê. A rabeca está diluída nos instrumentos de corda da Europa. Não é apenas um violino tosco, como pretendem alguns. O luthier (especialista na fabricação e no conserto do instrumento), Totonho de Mauriti, deu uma definição instigante: ´a rabeca é chorona´. Cada um viaja nas possibilidades desse ´choro´ e se delicia com o improviso das quatro cordas, em pleno sertão", explica Gilmar de Carvalho sobre a origem do instrumento.

A exposição

O pesquisador e o fotógrafo Francisco Sousa começaram em 2003, uma jornada sertão adentro, coletando imagens, histórias e sons de rabeca. A empreitada, que já rendeu o livro "Rabecas do Ceará", acompanhado de um CD com preciosos registros sonoros, dialoga com a exposição "Rabecas: Luteria e Performance", que será aberta amanhã, às 17 horas, no Espaço Cultural Correios.

Com curadoria de Carvalho e fotos de Sousa, o projeto foi contemplado pelo edital do Espaço Cultural Correios, desvendando o mundo sagrado da tradição, da construção do instrumento à performance. "Nunca os meios técnicos foram tão úteis para uma expressão de visão de mundo, de vida, de uma escrita etnográfica. A exposição traz de volta à cena os rabequeiros, luthiers. Algumas rabecas serão mostradas, seus sons serão ouvidos, imagens em movimento estarão sendo exibidas. Tudo com a marca do trabalho insano que o Francisco Sousa vem fazendo pelo Ceará, desde 2003", diz o curador.

Pelo olhar e a sensibilidade de Francisco Sousa, podemos captar o modo de fazer, de tocar, as experiências de vida, as expressões, a madeira que se transforma, as mãos sempre calejadas ou feridas dos músicos-artesãos que fazem e executam o seu próprio instrumento.

Sobre o processo curatorial, Gilmar de Carvalho conta que, depois do livro impresso, ele descobriu mais rabequeiros. "É como se esse pessoal e esse material estivesse em camadas da memória que precisam ser revolvidas. Um trabalho de arqueologia, que revela surpresas e mexe com o acaso", explica.

Traçar o recorte frente à riqueza da pesquisa não foi tarefa fácil. "Fazer um recorte que levasse em conta a valorização das fotografias do Francisco Sousa (o instante epifânico do ato fotográfico), a inserção das rabecas na cultura, o contexto cearense, as histórias de vida, a luteria improvisada, a questão da memória foi sofrido. O diálogo com o Francisco foi constante. E deve prevalecer, mais que um didatismo, uma visão de equilíbrio e harmonia, o que não é fácil quando se tem tanto material", acrescenta.

O trabalho de Sousa "emociona como registro de uma manifestação cultural que se transforma para permanecer". A exposição nos transporta às imagens comoventes da "luteria". Em cumplicidade com a natureza, os rabequeiros utilizam o material ao seu alcance: talos de carnaúba, canos de PVC, madeiras como pinho e umburana.

"Vou para os extremos: a rabeca de lata, encontrada em São Benedito, que pertenceu a Luiz Costa e a rabeca de PVC e madeira, "fabricada" por Chico Barbeiro em Baixio. Parecem-me representativas da diversidade dos materiais e técnicas, do desejo de fazer música e de interferir na cultura. O visitante vai se deparar com rabequeiros e luthier oriundos dos Inhamuns a Ibiapaba, do Cariri ao Sertão do Canindé, do Vale do Jaguaribe ao Sertão Central, embalados aos sons que preenchem o oco do mundo", ressalta o pesquisador.

Fique por dentro
Rabecas do Ceará

Conforme Gilmar de Carvalho, as rabecas sempre ficaram de fora dos estudos sobre cultura cearense. A exceção ficava por conta do Cego Oliveira, gravado e filmado pelo Rosemberg Cariry. Mesmo as menções ao toque de rabeca do Cego Aderaldo eram marcadas pela incompletude. "A ideia de ´perseguir´ rabequeiros veio do Francisco Sousa. Em meio às viagens que fazemos, fomos acumulando material e veio o livro ´Rabecas do Ceará´ (edição de 2006, lançada pela Expressão Gráfica)".

Os primeiros entrevistados e fotografados foram o Zé Oliveira (Juazeiro do Norte) e o Raimundo Veríssimo (Itapipoca), ambos falecidos em 2010. Depois, veio o Mestre Vino (Irauçuba), o Antonio Hortêncio (Varjota) e o interesse dos dois foi se acentuando. Em março deste ano, nos dias 18, 19 e 20, haverá o I Encontro dos Mestres da Rabeca e a nova geração de rabequeiros do Ceará, no Sesc Senac Iracema. Na programação haverá o relançamento do livro de Gilmar de Carvalho.

MAIS INFORMAÇÕES

Exposição "Rabecas: Luteria e Performance", de Francisco Sousa, com curadoria de Gilmar de Carvalho. Abertura amanhã, às 17 horas, no Espaço Cultural Correios (Rua Senador Alencar, 38, Centro). A mostra segue em cartaz até 26 de março. Visitas de segunda a sexta, das 8h às 17h. Aos sábados, das 8h às 12h. Entrada gratuita. Contatos: (85) 3255.7260.

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