Fonte: http://www.dgabc.com.br/Noticia/1306067/bispo-do-rosario-entre-seus-dois-universos
Nascimento: Japaratuba, sertão do Sergipe, 1909. Morte: Colônia
Juliano Moreira, Jacarepaguá, bairro rural do Rio de Janeiro, 1989. As
duas localidades são centrais não só na vida, mas também na produção
artística de Arthur Bispo do Rosário. A religiosidade, o folclore, as
festas populares, as memórias da vivência juvenil em Sergipe são traços
facilmente reconhecíveis nos objetos que ele criou, como se vê na mostra
"Um Canto, Dois Sertões", em cartaz no Museu Bispo do Rosário.
O museu fica na antiga colônia para doentes mentais de Jacarepaguá,
que abrigou Bispo, diagnosticado esquizofrênico-paranoico, por 50 anos.
Para conceber a exposição, uma equipe foi a Japaratuba, a 50 km de
Aracaju, e estabeleceu as relações da arte popular local com a poética
do artista.
O curador do museu, Ricardo Resende, considera que é a primeira vez
que a obra esteja sendo contextualizada para além da condição psíquica
de Bispo, em abordagem antropológica que leva em conta as raízes de seu
sincretismo religioso e suas obsessões.
São 150 obras que revelam seus dois universos. Logo na entrada, foram
dispostos objetos que remetem às festas sergipanas. Um barco de madeira
com velas bordadas por Bispo simboliza as cheganças, folguedos
dramatizados à beira-mar em que os participantes se vestem como
marinheiros.
O ringue de "diversões teatrais", o carrossel, a vida quilombola -
descendia de escravos e se acredita que tenha nascido num quilombo -
também são vestígios da infância sertaneja. A controvérsia sobre o
nascimento de Bispo (cogitava-se 1911, além de 1909) foi esclarecida
pela certidão de batismo achada na Igreja de Nossa Senhora da Saúde.
A relação mais direta entre os "dois sertões" se vê no segundo andar,
onde foram dispostas lado a lado vestes tradicionais das festas de
reis: femininas, ricas em fitas coloridas; masculinas, inspiradas em
trajes de marinheiros; os uniformes e o manto bordado à mão por 25 anos
com tecidos e linhas de que dispunha. Ele rasgava os panos e puxava os
fios, enrolados em carretéis e usados como matéria-prima. Não por acaso,
Japaratuba, onde viveu até ingressar na Marinha e vir para o Rio, aos
18 anos, é uma cidade de bordadeiras.
A missão de inventariante de todos os objetos existentes no mundo se
revela não só nos tecidos, mas em objetos recobertos e ressignificados
por ele: utensílios de cozinha, brinquedos, raquetes. "No início do
século 20, as crianças não tinham brinquedos, então ele, como as demais,
fabricava objetos para brincar, usando madeira, sabugo de milho",
destaca o curador, para quem a mostra traz uma perspectiva diferente
sobre Bispo, classificado como o primeiro grande artista contemporâneo
brasileiro por especialistas.
"Ele está sempre inserido no contexto da arte contemporânea, mas aqui
ressaltamos os aspectos de arte popular. Mas é uma tentativa de
releitura, e não a transformação em artesanato. A obra de Bispo já se
afirmou o suficiente para que não tenhamos medo disso: pelo contrário,
essa leitura a engrandece."
A cela de Bispo na colônia foi recriada poeticamente, com a pesada
porta de ferro, a cama diminuta com manta e dossel elaborados por ele,
e, projetada na parede, uma visão da Virgem de Laranjeiras, da região de
Japaratuba. O celibatário Bispo tinha fixação por virgens. Aparelho de
lobotomia e choque, usados até os anos 1960 na colônia, compõem o
ambiente.
"Ele subvertia seu papel na colônia: o hospício é o lugar do fraco,
da massificação do sujeito, da não-subjetividade. Ele conseguia ajuda
das pessoas pelo que criava, embora não fosse visto como arte", diz a
diretora Raquel Fernandes, lembrando que a obra, composta por cerca de
800 itens, ainda não ganhou um catálogo raisonné - compilação de todos
os trabalhos do artista. O conjunto é de propriedade pública (Bispo não
deixou parentes), e ainda será catalogada.
Cinquenta obras de dez artistas contemporâneos convidados suscitam
novas discussões. A instalação sonora de Felipe Julian e Sandra Ximenez
transmite a leitura de escritos de Bispo, que, misturadas ao som
ambiente dos pavilhões, das áreas externas da colônia e das festas de
sua terra, provocam a sensação de se ouvir vozes tumultuadas,
característica da condição de Bispo.
Os desenhos propostos pela mineira Marta Neves fazem ponte ainda mais
direta entre as duas realidades: ela pediu a moradores da colônia que
imaginassem Japaratuba e a habitantes da cidade que pintassem
Jacarepaguá. São paisagens inventadas por pessoas que não conhecem os
locais retratados, e que veem em Bispo um elo entre os dois.
Ligado à Secretaria Municipal de Saúde, sem orçamento próprio, o
museu é desconhecido. Fica a 30 quilômetros do centro e não tem
programação regular voltada a divulgar a obra que guarda. Hoje com
perfil de casa de repouso para idosos, a colônia, ou Instituto Municipal
de Assistência à Saúde, tem 300 moradores remanescentes do manicômio, e
está fazendo 90 anos. "Temos buscado ampliar o alcance da obra, é uma
missão fazer que o museu seja conhecido e frequentado. A zona oeste é
quase um deserto de equipamentos culturais, mesmo sendo a região mais
populosa do Rio", disse a diretora.
"A ideia é focar no Bispo. Quem vai sair do centro para vir a
Jacarepaguá para ver um Ernesto Neto, que pode encontrar no Museu de
Arte Moderna?", provoca Resende, para quem Bispo é artista em alta. Este
ano, o museu atendeu a pedidos de empréstimos para instituições
brasileiras e de Nova York, Barcelona e México. As informações são do
jornal
O Estado de S. Paulo.
UM CANTO, DOIS SERTÕES: BISPO DE ROSÁRIO
A exposição ficará em cartaz até o dia 3 de outubro, no Museu Bispo
do Rosário (Estrada Rodrigues Caldas, 3.400, Colônia Juliano Moreira,
Jacarepaguá, (21) 3432-2402). De 3ª a dom., das 10h às 17h. Grátis. Até
3/10