segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Cheias, o avesso das secas. Gilmar de Carvalho lança um olhar, a partir do cordel, sobre o registro das enchentes

Se a água é fundamental para o homem, ela consegue ser mais crucial ainda para o Ceará. Pode parecer absurdo, mas faz muito sentido. Muito antes da queima da camada de ozônio, do aquecimento global e da antecipação do apocalipse (muitos insistem em 2012), nós cearenses, sempre soubemos da importância de uma gota de água que fosse.

Não foi à toa que ganhamos, desde o início da colonização portuguesa, o estigma de sermos o grande areal entre o fértil Maranhão e o Pernambuco das bem sucedidas plantações de cana-de-açúcar.


A crônica das secas se antecipa e inclui registros (da tradição oral) de um tempo anterior à chegada dos lusitanos. É como se fosse um destino. Convivemos com a escassez e com o excesso como se fossem as duas faces da mesma e perversa moeda. Essa dicotomia leva à hipérbole e dá margem a construções simbólicas que dizem do nosso esforço em lançar as bases de uma civilização cearense.


Se avaliarmos bem, o registro das enchentes é menor e menos dramático que o das secas. Estas últimas geraram a ideia de Nordeste com pires na mão, fizeram eclodir o chamado romance social, e foram responsáveis por boa parte da cristalização de estereótipos contra os quais lutamos, bravamente, ainda hoje.


Secas e enchentes se alternam como encenações de nosso barroco existencial. É a natureza levada às últimas consequências. Temos uma crônica das cheias, que passa pelo cordel, pela música popular, e pelos relatos cotidianos. Em Aracati, encontramos marcas do ponto que as águas atingiram, em cheias que bateram recordes, como as de 1974, 1985, 2004, sem deixar de falar no “arrombamento” do Orós, em 1960, marcado pela entrada em cena da mídia radiofônica, com a fala tonitruante da Rádio Dragão do Mar, política e sensacionalista, ao mesmo tempo. A inauguração do açude Orós e, posteriormente, a do Castanhão, levaram ao fim de um ciclo anunciado de água inundando o Baixo Jaguaribe.


Ao levar para o cordel as cheias de 1947, o poeta João de Cristo Rei (1900 / 1983) joga o foco de sua narração para a cidade de Lavras da Mangabeira (CE): “Dizem que em Lavras morreu / O filho dum homem incréu / E quando foi se enterrar / o pai com a cara de réu / Na mão do anjo botou / Um cruzado e mandou / Comprar de chuva no céu”.


O poeta Moisés Matias de Moura (1891 / 1976), que viveu e atuou em Fortaleza, trata da “inudação” (sic) do dia 5 de maio de 1949: “Como agora em Fortaleza / Ficaram dessombriadas / 150 famílias / Na chuva desabrigadas / Que pelo nosso governo / Foram depois amparadas”. Mas a tragédia

é mais forte: “Muitas crianças morreram / Por debaixo das paredes/ Quando as mães iam buscar / Achavam frias nas redes / Os pretinhos estavam brancos / E os brancos estavam verdes”.


O arrombamento do Orós (1960) é visto como castigo divino pelo poeta Cristo Rei, radicado em Juazeiro do Norte: “Deus disse que quando os homens / sem fé, sem religião/ de seus mistérios divinos / fizessem profanação/ ele mandava castigo / terremoto e confusão”. O poeta fala do povo “fazendo enxame nas ruas”, introduz aviões “fornecendo alimentos” e cria um clima dramático que se aproxima do que foi alardeado pela mídia (impressa e eletrônica) da época. Ele diz: “Foi visto sob os pináculos/ dos escabrosos rochedos/ cinquenta crianças mortas/ nos mais tremendos degredos/ sobre os braços maternais / nas sombras dos arvoredos”.


Com senso de oportunidade e cantando o que aflige o público leitor, Manoel Caboclo (1916/ 1996) fez o relato das enchentes de 1974: “As chuvas caíram forte/ quase em toda a região/ as cidades sufocadas / na grande inundação / as águas levando tudo / gente, casa e plantação”.


Patativa fez a letra de Seca dágua, convocado por um grupo de artistas, como forma de vender discos e arrecadar fundos para as vítimas das enchentes de 1985: “É triste para o Nordeste / o que a natureza fez / mandou cinco anos de seca/ uma chuva em cada mês / e agora em 85 / mandou tudo de uma vez”. E cantava no refrão: “A sorte do nordestino / é mesmo de fazer dó/ seca sem chuva é ruim/ mas seca dágua é pior”.


Mudamos a forma da comoção e da mobilização hoje em dia. Aprendemos a dura lição da convivência com a escassez da água. Em relação às enchentes, tudo se resolve com a força das imagens, com a abertura de uma conta bancária para os depósitos em favor das populações atingidas, e com a expectativa de uma tragédia maior, nos anos seguintes.


Mesmo com o risco das enchentes, profetas ainda tentam ler os sinais da natureza, gente crédula ainda coloca as pedras de sal ao relento, dia 12 de dezembro, véspera da festa de Santa Luzia. As pedras que derreterem durante a madrugada sinalizarão os meses chuvosos. Alguns pássaros prevêem a seca e são agourentos (acauã). Na verdade, ainda não perdemos a possibilidade do sonho, é o que importa e sabemos reconstruir (ainda) o pouco que temos ou que resta, tanto quanto está feio, quando está “bonito pra chover”.


Gilmar de Carvalho é jornalista e advogado. Possui mestrado em Comunicação Social, pela Universidade Metodista de São Paulo (1991). É doutor em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998) e professor aposentado do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará.

Um comentário:

CARIRI CANGAÇO disse...

Fantástica e oportuna abordagem , parabens,

Manoel Severo